E a vida continua...


Ela entrou no quarto sorrateira, tirando os sapatos com o próprio pé; abaixou-se para pegá-los e, pé ante pé, caminhou até o banheiro. Fiz que não a vi, mas a acompanhei com os ouvidos. Fechou a porta sem trancá-la. O líquido que escorria preso há horas na bexiga seguido da descarga. “Droga!” Tinha se esquecido que a descarga engasgava, enroscava a corrente e não terminava nunca de esvaziar a caixa d´agua. Sim, minha querida, eu não a consertei ainda. Também não lavei a louça, não levei o lixo para fora, não dei banho no cachorro, não fiz a barba. Mas tomei banho, todos os dias. Não era ainda um caso perdido.
Ela abriu a gaveta da cômoda e ouvi o esfregar da seda. Colocaria aquela camisola que eu tanto adorava? Ouvi quando a enfiou de volta na gaveta. Não, seria aquele de malha, bem grande, um presente de Natal da avó Rosária.
Senti um breve ar fresco entrando sob os lençóis. Como se movia ligeira essa menina. Se não tivesse aberto os olhos por um segundo, não teria certeza se deitara ao meu lado ou não. O colchão não se movera; nossos pés não se tocaram. Nem mesmo o cobertor fora puxado, como se se escondesse, deitando-se de costas para mim.
Fiquei a olhar seus cabelos longos e perfumados, deitados sobre o travesseiro, como pêlos de um animal preguiçoso, e os ombros. Não podia ver mais nada, o restante estava submerso no grosso edredon que, para piorar, era negro como a noite. Quis tocá-la, mas não me atrevi. Sabia o quanto havia superado para deitar-se ali ao meu lado. O que eu menos queria era que ela percebesse que eu a estava observando com os olhos cheios de lágrimas e o coração em pedaços.
Eu também sentia falta dela. Do seu sorriso, do seu mal humor, da sua energia, da sua vida, da sua companhia, da sua incrível capacidade de acreditar, seguir em frente, dar meia volta e recomeçar. Eu também sentia falta de tantas coisas! Mas minha dores as guardo para mim. Minha missão era amenizar as suas, segurá-la pela mão e fazê-la caminhar, de cabeça erguida, para frente! Não estava sendo fácil mas vendo-a ali, ao meu lado, tomando o lugar da mãe que não existia mais, me fez chorar.
Minha princesa, minha querida, minha doce filha órfã: Nós vamos conseguir.
Adormeci.
Acordei com um braço leve e pequeno apoiado na minha barriga, dentro de um pijama florido cujas mangas poderiam cobrir outros três braços iguais àquele. Acordei com o sol entrando pela janela, a poeira flutuando silenciosa e uma saudade arrebatadora dentro do peito, mas com a certeza de que - mesmo que ela não voltasse mais, mesmo que a vida tivesse ido embora do seu corpo - uma parte dela vivia e estava ali, ao meu lado, implorando para lhe dizer que tudo ficaria bem.
Desci e fiz um leite com chocolate quente, torradas e suco de laranja. Minha princesa desceu as escadas, com o pijama arrastando pelos degraus e os olhinhos inchados.
Sim, pensei... tudo ficará bem, um dia. E ela sorriu. O sorriso da mãe, os olhos da mãe, os cabelos da mãe. Correu para mim, deu-me um abraço e sua voz, fininha, doce e suave me sussurrou nos ouvidos:
- Vai ficar tudo bem...
Chorei abraçado a ela, uma criança, um anjo que ela deixou para mim, para me salvar.

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